19 dezembro 2012

Imagens Posteriores, por André Viana

Publicado no livro sobre a série homônima. Réptil Editora, 2012.






Territórios da saudade

[...] brilha sozinha no coração de todas as ausências.
Eduardo Lourenço

De tão vivas e profundas, algumas viagens terminam por impregnar outras futuras – com alguma sorte, todas as outras futuras – que uma alma feliz um dia vier a fazer na vida. Pode ser que o assunto aqui seja simplesmente saudade, “a saudade como um sentimento vivido de eternidade”, na frase de um autor caro à artista Patricia Gouvêa, o português Eduardo Lourenço. Digo isso porque houve uma vez na Bolívia, lá pelo início de 2002, em que uma turma de cinco amigos teve a chance de integrar uma dessas viagens de formação. Ainda hoje aquela pequena odisséia andina emite imperceptíveis irradiações nos eventuais encontros do grupo, no jeito como nos cumprimentamos, nas piadas, na maneira como relativizamos o mundo quando estamos juntos.
Pulsação secreta no reservatório da memória de cada um de nós, aquela viagem à Bolívia se perpetua na cumplicidade de quem cruzou junto, em determinado momento da vida, o mesmo rio. Não exatamente aquele de Heráclito, de fonte metaforicamente clara e abundante, mas um rio seco e pedregoso, repleto de porcos rosados e de lixo, como o de Yotala, um vilarejo da cordilheira boliviana onde achamos por bem parar por alguns dias de modo a reabastecer as energias esvaídas na diarréia coletiva a que festivamente nos entregamos ao cabo de alguns inevitáveis episódios culinários. (Sobretudo um, em Tarabuco, quando subitamente nos vimos como convidados de honra num casamento em que nos foi servido mondrongo, espécie de sopa a base de batata com corante e carne de porco cozida – a carne, naquele caso, para nosso combalido deleite, com as cerdas do inocente animal ainda presas à pele.)

Fisiologias à parte, Yotala foi um momento importante da nossa viagem porque ali tivemos condições não só de regular o corpo como de nos abrir novamente a instantes de ócio: as declamações na biblioteca da sede do Teatro de los Andes (“Oisive jeunesse, à tout asservie, par délicatesse, j’ai perdu ma vie”), a apresentação solitária de Danka, a polonesa tocadora de acordeão, as fotos casuais na piscina azul e vazia, as saudações a Pachamama, a caminhada de fim de tarde pelos trilhos abandonados da antiga estação de Yotala, a exatos 2.526 metros acima do mundo.
Minha memória, claro, não chega a tanta precisão. Cito o número graças às tantas fotos que tiramos da desolada placa da estação, só não inteiramente fantasma porque uma família ali resolveu se instalar. Já era fim da tarde quando finalmente avistamos aquele casebre com seu alpendre carcomido, que em outros tempos havia servido de plataforma para embarque e desembarque de passageiros (“Onde estarão todos?”, me sopra sadicamente Juan Rulfo). Estávamos todos de máquina fotográfica em punho, e nos entregávamos avidamente ao registro daquela tarde de céu branco, estimulados por conversas travadas com Patricia, a única fotógrafa profissional do grupo, sobre o velho e bom instante decisivo.
Sem saber direito o que encontraríamos no interior da estação, impusemos um ar de respeito às nossas passadas e assim começamos nossa aproximação. Logo vimos um varal de roupas preso às colunas do alpendre e, entre calças masculinas e algumas camisas, quatro crianças brincando, uma delas um bebê de seus 8 meses, o rosto sujo, sentado no chão. Ainda hoje, dez anos passados, não lembro de nenhum outro momento da minha iludida existência em que tive a sensação tão nítida de que, como um pássaro raro que repentinamente pousa na sua frente, eu estava diante do meu instante fotográfico decisivo. A foto perfeita, milimetricamente enquadrada, naquele rolo de filme em preto e branco, da miséria humana. Diante das crianças sujas da estação de trem de Yotala, eu era Cartier-Bresson, eu era Sebastião Salgado.
Mês mais tarde, na volta para casa, depois de muitos outros instantes decisivos (não exatamente fotográficos, mas de perigo de morte mesmo), tive a chance de finalmente revelar o rolo de filme gasto em Yotala. É claro que meu registro das crianças sujas da estação de Yotala não tinha nada além de uma piedosa insignificância estética (foto torta, ângulo tosco, sombras no lugar errado, história nenhuma a contar). Mas ali, na estação de trem, segundos, minutos, horas, depois do disparo de meu obturador, eu ainda não sabia disso. E então compartilhamos, Patricia e eu, a felicidade daquela fração de tempo que meu eu-Bresson, meu eu-Salgado, num misto de oportunismo e genialidade, havia conseguido eternizar.
Naquela época, a ideia do instante decisivo ainda não me soava demodée. Embora já tivesse começado a pôr intuitivamente em prática algumas questões suas relativas ao tempo na fotografia, Patricia tampouco tinha uma opinião clara a respeito da fotografia como morte do tempo. Daí termos tanto conversado sobre o tema, na manhã seguinte ao episódio da estação, enquanto caminhávamos em direção ao rio seco e pedregoso de Yotala. Não conseguiria reproduzir aqui as palavras e idéias despejadas por todos nós naquele dia. Certas coisas, felizmente, existem apenas para serem levadas pela brisa. Mas lembro ter pensado que, se um dia Patricia viesse a publicar um livro de fotografias, escreveria sobre aquele momento.
Pois bem. A brisa passou, o tempo passou, aqueles que éramos passamos. Patricia, artesã da imagem, pouco a pouco foi se impregnando das teorias de Flüsser, de Bergson, de André Rouillé, de Maurício Lissovsky e Luiz Alberto Oliveira, ao mesmo tempo em que registrava, de carro, ônibus ou barco, seus experimentos fotográficos nos quais o tempo já não se apresentava mais com sua tediosa máscara mortuária, mas como, digamos, sentimento vivido de eternidade. Baía de Guanabara, Chapada dos Veadeiros, Grand Canyon, Lençóis Maranhenses, Amazônia, Lagoa dos Patos, Uruguai, Argentina, Bolívia: paisagens finalmente libertas de seus atributos geográficos, constituindo não mais uma fruição estática para o espectador, mas experiência viva.
Difícil encontrar título mais adequado para esta série que finalmente recebe o registro que merece. Pois assim como o fenômeno descrito pela teoria da cor na física óptica (olhe para uma lâmpada acesa e depois feche os olhos e vai entender), as imagens deste livro permanecem muito tempo depois de terem sido vistas. Porque o passado, nas fotos de Patricia, é sempre muito mais real, muito mais espesso do que o presente, brasa que se apaga à medida que aquece. A memória, no fim, é a esmola mais generosa que o tempo pode nos oferecer. É por isso que todas as imagens deste livro, para mim, independentemente de onde elas têm sido tiradas, estão impregnadas daquela viagem à Bolívia. Porque eu estou impregnado daquela viagem à Bolívia. Porque Ingrid, Renato e Stelio estão impregnados daquela viagem. E porque Patricia Gouvêa é uma artista impregnada de tempo, memória e, sobretudo, saudade.

André Viana, março de 2012.

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