29 abril 2013

Imagens Posteriores por Susana Dobal











Texto escrito para o debate por ocasião do lançamento do livro em Brasília (Livraria Cultura, 16/04/2013)
                                                                                                                             
Paisagem pede contemplação e contemplação pede imobilidade. Mas não, as palmeiras, as dunas, o gado, as árvores, os campos, a água, as nuvens, as montanhas passam em alta velocidade. O corpo não, o corpo está parado. Na verdade não, o corpo está em movimento, mas parado em movimento. A imagem que resulta traz ela também um movimento parado. A paisagem de Patrícia Gouvêa carrega um paradoxo pois reúne em uma só unidade movimento e imobilidade. Não é cinema, mas a imagem está em movimento. É fotografia, mas o que foi retido não foi uma fração de segundo congelada e sim a passagem da fração de segundo flagrada em paisagens apressadas. E se depois de mais de um século e meio de a fotografia procurar o ápice do tempo houvesse um esgotamento do momento decisivo e se voltasse ao tempo fluido de Etienne-Jules Marey? Marey não estava interessado na grafia da luz e sim na grafia do tempo, por isso gastou uma vida inventando engenhocas para registrar a pulsação humana, o galope do cavalo, o vôo de um pássaro, o movimento do corpo, o fluir de uma arraia, da fumaça, de um líquido e o que mais se apresentasse em estado de inquietude. Procurou registrar o fluxo do tempo e não o seu congelamento – a isso ele chamou cronofotografia. Patrícia Gouvêa faz cronopaisagens que compartilham com as imagens de Marey aquele mesmo território de quase imaterialidade, embora ainda fotografia e como tal dependente de uma realidade à frente da câmera. 

Diluiu-se, porém, nas suas paisagens, aquele ímpeto documental de deixar registrado na legenda o local visto na imagem. Interessa menos saber onde foi feita a fotografia do que a sensação que causou. O nome do lugar reduziu-se a nome de amigos que a acompanhavam na viagem: o registro não é de lugares mas de metáforas, de configurações de fulano e sicrano enquanto paisagem. Um mais azul e sereno, outro intempestivo, ligado à terra vermelha, outro ainda etéreo mas sujeito às intempéries que podem colorir o céu desde um azul pacífico a um laranja ardente. Essas paisagens são mais estados do que coisas por isso configuram-se como borrões. 

Não só o cenário se agita, mas também o ponto de vista está em movimento. Se do lado de lá a paisagem transfigurou-se em imagens impalpáveis e metáforas, do lado de cá o olho que observa de dentro do visor não representa o ponto de vista privilegiado renascentista que inicialmente informou a ótica fotográfica. Não só ele está em movimento como o movimento multiplicou-se em olhares afins ao lado de quem a fotógrafa também observa o mundo. Membranas de Luz é o livro de Patrícia Gouvêa onde ela relata que a experiência das suas Imagens Posteriores vem do diálogo com outros olhares como os de Douglas Gordon, Kátia Maciel, Kiarostami, Ozu, Deleuze, Bergson e outros que também se recusaram a aceitar um tempo linear e cronológico. Cada um a sua maneira, eles subverteram a lógica do tempo para revelar o que pode haver de pulsação e duração na lentidão ou na imobilidade, ou o que há de circularidade no linearidade do tempo. As paisagens de Patrícia Gouvêa trazem à tona o fato de que a imagem fotográfica não produz um registro fixo e sim mera membrana, espaço de passagem. Se há um registro feito aqui ele é o de um tempo efêmero em que se acredita menos na verdade de um instante congelado do que na eterna pulsação de um tempo múltiplo habitando cada fração de segundo. A paisagem que a contemplação capta mostra, portanto, a paisagem do tempo acontecendo – um tempo simultaneamente material e imaterial, gente e coisas, movimento e imobilidade, duração e transição, contemplação e lampejo. Um tempo que ocorre simultaneamente com o nosso olhar habitado por tantos outros olhares. Por isso será difícil olhar ainda pela janela do carro sem se lembrar que aquilo que passa é mais do que uma paisagem fugaz, é um estado de paisagem, uma cronopaisagem. A originalidade desse trabalho está justamente em utilizar o borrão cada vez mais presente na fotografia contemporânea em um gênero até então dominado por uma materialidade estática e com isso nos obrigar a ver na paisagem algo além do que já víamos antes.

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